domingo, 21 de setembro de 2008

O pior sertão dos últimos 30 anos é revelado em reportagem especial

NORTE DE MINAS E VALE DO JEQUITINHONHA - A seca que assola o Norte de Minas levou tudo o que dona Maria Ferreira Neves, 71 anos, tinha na vida. Por causa dela e das agruras pelas quais passou com os nove filhos e o marido, a senhora baixinha e de andar arrastado terminou abandonada e doente, numa casa pequena e isolada, de adobe e paus, em Catuti. «É triste demais a nossa sina», repete sempre, com os olhos vermelhos e encharcados. Sem ninguém na vida, e agora que a saúde também a abandonou, a senhora melancólica não consegue mais enfrentar a estiagem e plantar seus mantimentos. A renda da aposentadoria, R$ 400, mal dava para os medicamentos e agora tem de ser usada para comprar alimentos.Cansados de trabalhar a terra em vão, já que a plantação não vinga e o gado, sem pastos, emagrece e morre, os sertanejos intensificaram o êxodo rural. Deixaram para trás povoados fantasmas e ruínas invadidas pelo mato ressequido ou habitados por idosos renitentes. Quem resiste praticamente depende da água dos caminhões-pipa para beber. Mas há quem ainda precisa caminhar horas sob o sol escaldante e o solo rachado para matar sua sede. Como a família de Maria Antunes da Silva, 47 anos, que vive na comunidade do Baixão, em Monte Azul, extremo norte do Estado. As histórias destas duas mulheres são a expressão do sofrimento daquela gente, que têm sua situação apenas amenizada pelas políticas emergenciais. A situação delas é o avesso do que vivem famílias na Região Metropolitana de Belo Horizonte, às voltas com as estragos das chuvas dos últimos dias.Das vilas pobres, povoados afastados e dispersos do Vale do Jequitinhonha, à sequidão semi-árida do Norte de Minas, a reportagem do HOJE EM DIA percorreu 19 municípios destas regiões para mostrar os dramas e estragos da seca deste ano, a pior em 30 anos. As cidades estão entre as 99 que decretaram situação de emergência por causa da estiagem, à Coordenadoria Estadual de Defesa Civil (Cedec). Desde o dia 27 de abril não cai uma só gota de chuva em toda a Região Norte. Há localidades onde isso não ocorre desde março. As informações são do 5º Distrito de Meteorologia. No Jequitinhonha, houve precipitação em algumas áreas, em junho, mas a miséria do Vale prejudica as famílias que vivem afastadas, em rincões de difícil acesso onde os rios se tornaram caminhos de pó e pedras.Entre junho, julho e agosto, a média pluviométrica dos últimos 30 anos é 15,8 milímetros em Espinosa, no Norte de Minas, fronteira com a Bahia. O índice deste ano é zero. O mesmo foi registrado pelos meteorologistas do centro de Januária, que não apresentou precipitação, apesar de a razão histórica ser de 11,6 milímetros. Para se ter idéia do que isso significa, uma chuva considerada minimamente expressiva pelo distrito, deve alcançar 5 milímetros, pois só assim é capaz de durar acima de 30 minutos e ainda causar pequenas alterações ao clima. O calor e o ar seco também castigam. Em Mocambinho, entre o Rio São Francisco e os intrincados canais de irrigação do Projeto Jaíba, a umidade ficou abaixo de 20%.As paisagens são parecidas. Nos centros urbanos, ao lado dos trios elétricos e dos comícios eleitoreiros, caminhões-pipa se movimentam pelas ruas na direção da zona rural. Em Monte Azul, cidade de 23 mil habitantes, os nove veículos-tanque do Exército, que são orientados pela prefeitura, chegam a percorrer, cada um deles, até 90 quilômetros diários, no esforço de atender à população. A distância compreende a captação, na vizinha Espinosa, a 30 quilômetros, e a distribuição pela zona rural. Cada membro de uma família recebe apenas 20 litros de água.Ainda assim, há quem fique sem o fornecimento de água potável, tendo de cobrir longas distâncias a pé para conseguir o que beber. Latão de ordenha com capacidade para 10 litros na cabeça, Maria Antunes da Silva faz até cinco viagens diárias, de uma hora cada, para conseguir levar água fresca para sua casa. É assim que os moradores do povoado de Baixão, um agreste a 22 quilômetros de Monte Azul, de acesso tão difícil que nem caminhão-pipa consegue chegar, matam sua sede.Atrás dela, seguem os filhos e netos, cada qual com um tipo de recipiente sobre a cabeça. Sobem e descem as estradas de terra e poeira sob o sol forte. Até a menorzinha, de apenas 4 anos, dá sua colaboração e carrega sobre a cabeça uma garrafa pet 2 litros. «A gente começa cedo porque o calor é menos forte. Fora essa, a água que temos mais próxima é a de um poço artesiano. Só que é muito salobra e não dá para gente beber‘, afirma a sertaneja, que vive em sua casa com o esposo e dois filhos, mas tem sua casa rodeada pelas dos outros filhos e netos.A repetitiva caminhada diária pela sobrevivência leva a família até uma fazenda que fica a 3 quilômetros dali. A dona da propriedade deixa que os habitantes do Baixão se abasteçam numa torneira que ligou a uma bica que mina água da serra. «É de favor, mas é o que nós conseguimos. Porque se dependesse dos caminhões-pipa, não sei como é que nós íamos fazer», desabafa.

Casas abandonadas e rios secos.

Casas abandonadas já são comuns nas áridas zonas rurais do Norte de Minas. No caminho de poeira, arranha-gatos e Cerrado seco para a comunidade de Gato, a 20 quilômetros do Centro de Monte Azul, elas se estendem por espigões de mato amarelo e pastagens quebradiças. São casas simples, de janelas dependuradas, telhados desabados, invadidas pela vegetação rasteira, insetos e lagartos cinzentos. Os fornos de barro do lado de fora se tornaram morada de morcegos e pássaros. O silêncio absoluto só é quebrado pelo vento que sopra o calor e o canto aflito das siriemas. «Essa gente aí que se foi não volta mais nunca», sentencia o assistente de gabinete daquela prefeitura, Paulo Custódio Neto, acostumado a ver grandes emigrações para São Paulo, Montes Claros e Belo Horizonte.Em volta das casas desoladas, os dejetos das vacas mostram que as construções são sombras apreciadas pela criação, que pasta um mato quebradiço e lenhoso. Cochos vazios e desolados ficam escondidos pelo mato típico do Cerrado e os cactos que conseguem passar sem água. Há três meses, um lago com 5 metros de profundidade, e um córrego que o abastecia, secaram completamente. «Era um dos principais pontos para o gado pastar e beber água. Agora, os fazendeiros têm de levar as criações para pastos distantes», afirma Paulo. O fundo da lagoa é marcado pelas pegadas ressecadas do gado, que buscou beber ali até a última gota barrenta. No leito de pedra, terra e pó, só teias de aranha proliferam.O gado da região está magro. Rebanhos inteiros mastigam com insistência braquiara da textura de gravetos, que quebra só de caminhar por cima. Estufando o seu couro, os ossos das costelas e ancas das reses já estão aparentes. Segundo a Emater, a cidade onde mais cabeças de gado morreram em Minas foi Mirabela, que perdeu 1.800 cabeças. Não há ainda um relatório com todas as perdas deste ano ou do último.A solução para muitos é tocar o rebanho fraco e debilitado por quilômetros adiante, até pastagens alugadas. Como não dispõem de dinheiro, o bem cobrado aos criadores é parte da própria boiada. «É uma matemática perversa. O dono dos bois fica sem pasto por causa da seca e dá dois deles para pastar por um mês. Se não chover, dá mais dois, até perder tanto, que é preferível se desfazer de tudo», conta Paulo Custódio, da Prefeitura de Monte Azul.Como o esposo e os dois filhos trabalham nas roças de outros estados, restou a Maria Antunes da Silva, 47 anos, pastorar a boiada por mais de 2 quilômetros, até um campo de braquiara alugada. Com um pano enrolado sobre a cabeça e o rosto, para se proteger do sol forte e da poeira, a mulher diariamente toca o gado da família com um pau na mão. «A seca está tão brava, que quando chamo os bois para pastar e beber água, depois do almoço, eles vêm sozinhos para a porteira, antes mesmo de eu abrir», conta.

Êxodo e decepção no Pé do Morro, em Catuti

Um a um, o marido e os nove filhos da dona Maria Ferreira Neves, 71 anos, deixaram Catuti, no Norte de Minas, em busca de emprego e recursos para não depender sempre daquilo que produziam na terra com custo, já que a seca levava quase tudo. Ela terminou sozinha, na casa de adobe e reboco azul, no fundo do vale do povoado de Pé do Morro, a 18 quilômetros de Catuti. Ela esperava que algum deles ainda estivesse por lá. Mas nem mesmo o marido suportou a seca. Saíram em busca de melhores condições, mas terminaram com uma história mais triste do que a outra.«Meu marido me deixou há 20 anos. Foi para Sete Lagoas trabalhar e nunca mais voltou. Arranjou família nova, mas morreu da doença de Chagas que pegou aqui na roça», lembra. Dois outros filhos dela se mudaram para Campinas (SP) e vivem em vilas pobres. Não têm recursos para regressar ao Norte de Minas e visitar sua velha mãe doente. Um outro também desenvolveu Chagas e precisa usar marca-passo. «Tem um outro, meu mais novo, que também saiu daqui para arranjar um jeito na vida. Ia trabalhar braçal, de pedreiro ou outra coisa. Só que entrou foi numa cachaça braba e adoeceu. Esse se perdeu na vida», desabafa.O caminhão-pipa que enche sua cisterna e os R$ 400 da aposentadoria são o que lhe permite tocar a vida, sozinha na pequena casa. «Até há uns 2 anos, ainda plantava umas ruas de feijão, milho, mandioca. Lutava contra a seca para não deixar perder tudo», recorda. Porém, daquele tempo para cá, a saúde da senhora a abandonou e a fome começou a ser um drama real. «Não consigo mais plantar nada. O que ganho de aposentadoria mal dá para comprar os remédios para pressão, inchação e tonturas», lamenta a solitária senhora, que nada responde quando indagada sobre seu futuro. «Todo mundo foi embora e eu fiquei. Ninguém me ajuda. Nessa vida, sobrou eu e Deus», conforma-se.As famílias remanescentes sabem que suas tarefas são duras, mas contam com a união. Melhor para a dona Maria Fernandes Ribeiro de Araújo, 56 anos, que vive na lida do Cerrado com apoio do marido e de um dos filhos, Adão Alves de Araújo, 30 anos. Também moradores de Catuti, eles bebem da água que lhes é servida por um caminhão-pipa. Os cochos do gado usam o líquido calcário que é extraído com um velho balde, do fundo de um poço artesiano. «Depois, a gente leva ela na cabeça para dar aos porcos, galinhas, pavões. Foi muita luta até chegarmos nisso. O gado morria de sede. Era uma tristeza. Mas, hoje, a vida está um pouco melhor», compara. Do lado oriental das cadeias rochosas da Serra do Espinhaço, o Vale do Jequitinhonha também sofre com a estiagem. Longas extensões de zonas rurais estão secas, principalmente em Berilo, Minas Novas, Araçuaí e Francisco Badaró. Técnicos da Emater nas localidades informam que o plantio de setembro está sendo adiado até novembro ou dezembro. Nestas cidades, o abastecimento por caminhões-pipa, na zona rural, segue ininterrupto, desde 2007.Mais de 30 rios e córregos importantes, entre Carbonita e Araçuaí, estão completamente vazios, com os leitos pedregosos expostos. Fartos dos prejuízos com o gado que morreu de sede, em 2007, fazendeiros desfazem de suas terras. Na propriedade em que trabalha, há 14 anos, em Carbonita, Maria de Lourdes Cruz de Oliveira, 53 anos, conta que morreram tantas cabeças, que o dono vendeu toda criação, de cerca de 300 animais. Agora, ele pôs a venda toda fazenda. Dos bois, só restaram pêlos no arame farpado próximo a uma barragem ressecada.A estiagem ainda propaga incêndios na região. Debaixo de uma coluna de fumaça negra que despejava fuligem sobre sua casa, em Rubelita, também no Jequitinhonha, o senhor Nelson de Oliveira Santos, 49 anos, pai de nove filhos pequenos, observava o Cerrado arder, impotente. «Não dá mais para eu trabalhar de bóia-fria no Sul. Já estou cansado. O córrego que passava atrás da minha casa cortou (secou) há muitos meses e as plantações aqui não renderam nem um prato de milho. Não fosse a água dos caminhões-pipa, já tinha ido embora. Agora, vem este fogo ai para cima da gente», desabafou